Leio João Miguel Tavares há anos. Gosto muito da sua frontalidade, simplicidade, exigência, humor.
Apreciei muito a iniciativa de Marcelo Rebelo Sousa em convidar João Miguel Tavares para um papel de destaque no dia de Portugal hoje celebrado.
E considero que o texto que João Miguel Tavares hoje nos escreveu e leu deve ser lido muitas vezes, devagar, por todos nós. Por isso aqui venho.
Gostei da iniciativa do
Público em publicar este texto pouco tempo depois de ter sido tornado público (fica o
standard para o
site da Presidência). O link está
aqui.
As palavras, pelas palavras, estão abaixo, que as transcrevi quando ouvi o texto pela segunda vez. A pontuação é da minha responsabilidade.
Obrigado, João Miguel Tavares.
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Senhor Presidente da República,
Senhor
Presidente da República de Cabo Verde,
Autoridades
civis e militares,
Minhas
senhoras e meus senhores,
Eu vivi
e cresci a 100 metros do local onde me encontro, ali mesmo, no cimo da Avenida
Frei Amador Arrais.
Foi
nessa casa que habitei até fazer aquilo que a maior parte dos portalegrenses
faz após acabar o secundário: deixar a cidade para ir estudar fora, na
universidade.
Boa
parte dos portalegrenses, infelizmente, já não volta a viver aqui. Eu não
voltei. Mas aquela será sempre a minha casa. E esta foi, é e será sempre a
minha cidade.
Tenho a
honra de ser o primeiro filho da democracia a presidir às comemorações do 10 de
Junho. Não sei o que é viver sem liberdade. Devo ao Portugal democrático e ao
Estado português boa parte daquilo que sou. Sou filho de dois funcionários
públicos. Fiz o ensino básico e secundário numa escola pública. Licenciei-me numa
universidade pública.
Portugal
não falhou comigo. Permitiu que um simples estudante de uma cidade do interior,
sem qualquer ligação à capital e às suas elites, fosse subindo aos poucos na
vida e chegasse até aqui.
O meu
crescimento acompanhou o crescimento da democracia portuguesa.
Vi o
quanto o país mudou.
Até ao
final da década de 90, Lisboa estava a mais de quatro horas de autocarro de
Portalegre, e a essa distância física correspondia uma ainda maior distância
cultural. Os livros eram poucos e vendiam-se nas papelarias; o cinema só
funcionava ao fim-de-semana; as bandas que nós queríamos ouvir não passavam por
cá.
Mas o
país avançava, e eu via-o avançar.
Os meus
pais estudaram mais anos e tiveram mais oportunidades do que os meus avós. Eu
estudei mais anos e tive mais oportunidades do que os meus pais.
Como
acontecia em tantas casas, a minha família investia parte do salário a comprar
livros e enciclopédias que chegavam pelo correio, a prestações. Esses livros
representavam o conhecimento e a educação que as famílias ambicionavam para os
seus filhos.
Os pais
lutavam por isso – lutavam menos por eles, do que pelas suas crianças, para que
elas tivessem uma vida melhor, estudassem, fossem “alguém”. Os seus filhos
chegariam às universidades.
Estudariam
dezasseis, dezassete, vinte anos, se fosse preciso. Viajariam mais. As suas
férias não estariam limitadas aos 15 dias em Albufeira. Seriam grandes. Seriam
felizes. Seriam europeus.
A geração dos meus pais sacrificou-se
para que os filhos tivessem o que eles nunca tiveram. Mas é possível que eles
tenham tido aquilo que mais nos tem faltado nos últimos vinte anos: um objetivo
claro para as suas vidas e um caminho para trilhar na sociedade portuguesa.
Os
portugueses lutaram pela liberdade em 1974. Lutaram pela democracia em 1975.
Lutaram pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80. Lutaram pela
entrada na moeda única no final da década de 90.
Não é
fácil saber por que é que estamos a lutar hoje em dia.
É nessa
dificuldade que repousam tantas das nossas angústias.
As
pessoas de hoje não são diferentes das de ontem: enquanto indivíduos,
continuamos a amar, a sofrer, a chorar, a rir, hoje como sempre. Boa parte de
nós, talvez julgue mesmo que a política é somente um cenário longínquo, distante
da vida que nos importa, que é aquela que está mais próxima de nós. Daí o
chamado “desinteresse pela política”.
Mas
creio que este sentimento é já uma consequência dos nossos próprios fracassos.
A integração na Europa do euro não correu como queríamos. Construímos
autoestradas onde não passam carros. Traçámos planos grandiosos que nunca se
cumpriram. Afundámo-nos em dívida. Ficámos a um passo da bancarrota. Três vezes
– três vezes já – tivemos de pedir auxílio externo em 45 anos de democracia. É demasiado.
Perguntamo-nos
como foi isto possível.
Criámos
comissões de inquérito para encontrar responsáveis. Descobrimos um país
amnésico, cheio de gente que não sabe de nada, que não viu nada, que não ouviu
nada. Percebemos que a corrupção é um problema real, grave, disseminado, que a
Justiça é lenta a responder-lhe e que a classe política não se tem empenhado o
suficiente a enfrentá-la.
A
corrupção não é apenas um assalto ao dinheiro que é de todos nós – é colocar
cada jovem de Portalegre, de Viseu, de Bragança, mais longe do seu sonho.
O sonho
de amanhã ser-se mais do que se é hoje vai-se desvanecendo, porque cada
família, cada pai, cada adolescente, convence-se de que o jogo está viciado.
Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não
chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas. Que é preciso ter os amigos
certos. Que é preciso nascer na família certa.
Os
miúdos que não nasceram nesse tipo de “família certa” têm direito aos mesmos
sonhos que os filhos das elites portuguesas – todos nós concordamos com isto.
Mas será que estamos a fazer alguma coisa para que aquilo com que concordamos
se torne realidade? Será que podemos garantir que o talento conta mais do que a
família em que cada um nasceu? Será que a igualdade de oportunidades existe?
Quando
eu digo à Carolina, ao Tomás, ao Gui ou à Rita – os meus quatro filhos – “leiam
mais, trabalhem mais, que o vosso esforço será recompensado” – será que lhes
estou a dizer a verdade?
Os meus pais disseram-me isso a mim e eu
estou aqui. Mas será que a mesa está equilibrada e o elevador social funciona
hoje da mesma forma? Ou a vida estará bem mais difícil para um jovem na casa
dos vinte anos, que numa economia de baixo crescimento tem de competir com uma
geração mais velha já licenciada, integrada num mercado de trabalho rígido, que
confere muita proteção a quem tem um lugar no quadro e muito pouca proteção a
quem não o tem?
No nosso
país instalou-se esta convicção perigosa: um jovem talentoso que queira singrar
na carreira exclusivamente através do seu mérito, a melhor solução que tem ao
seu alcance é emigrar. Isto é uma tragédia portuguesa.
Não
podemos condenar os nossos filhos ao discurso fatalista de um Portugal que é
assim, porque nunca foi de outra maneira.
O
desespero não nasce do erro, mas do sentimento de que não vale a pena
esforçarmo-nos para que as coisas sejam de outra forma, porque nunca serão.
A falta
de esperança e a desigualdade de oportunidades podem dar origem a uma geração
de adultos desencantados, incapazes de acreditar num país meritocrático.
Esta
perda de esperança aparece depois travestida de lucidez, e rapidamente se
transforma numa forma de cinismo. Achamos que temos de ser pessimistas para
sermos lúcidos. Que temos de ser desesperançados para sermos realistas. Que
temos de ser eternamente desconfiados para não sermos comidos por parvos.
Guardamos
os bons sentimentos para as nossas relações pessoais, onde somos certamente
seres encantadores, mas quando se trata de refletir sobre o nosso papel
enquanto cidadãos, partes de uma nação e de um tecido social e político comum,
colocamos uma mola no nariz e dizemos que pouco temos a ver com isso, porque os
políticos não se recomendam.
Há o
“eles” – os políticos, as instituições, as várias autoridades, muitas das quais,
receio bem, se encontram hoje aqui presentes. E há o “nós” – eu, a minha
família, os meus colegas, os meus amigos.
Entre o
“nós” e o “eles” há uma distância atlântica, com raríssimas pontes pelo meio.
“Eles”
não têm nada a ver connosco. “Nós” não temos nada a ver com eles.
O senhor
Presidente da República costuma dizer com frequência que os portugueses, quando
querem, são os melhores do mundo. O senhor Presidente da República que me
perdoe o atrevimento: não há qualquer razão para os portugueses serem melhores
do que os finlandeses, os nepaleses ou os quenianos.
Mas
tenho uma boa notícia para dar: também não precisamos de ser melhores.
Para
quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os portugueses são aqueles que
estão ao nosso lado. E isso conta. E conta muito.
Partilhamos uma língua, um país com uma
estabilidade de séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes pareçamos
cansados de nós próprios.
Tivemos História a mais; agora temos
História a menos. Passámos da exaltação heróica e primária do nosso passado, no
tempo do Estado Novo, para acabarmos com receio de usar a palavra
“Descobrimentos”. Simplificamos a História de forma infantil.
No
século XVI, Luís de Camões já cantava os seus amores por uma escrava de pele
negra – tão bela e tão negra que até a neve desejava mudar de cor. Para
desarrumar os estereótipos, talvez precisemos de um pouco menos de Lusíadas e de um pouco mais de lírica
camoniana.
Menos
exaltação patriótica e mais paixão por cada ser humano – eis uma fórmula que me
parece adequada aos tempos em que vivemos. Sendo já poucos os que acreditam nas
grandes narrativas, continuamos a acreditar nas pessoas que temos ao nosso
lado. E esse é o caminho para a identificação possível dos portugueses com
Portugal.
Sozinhos
somos ninguém. A velha pergunta bíblica “acaso sou eu o guarda do meu irmão?”
tem uma única resposta numa sociedade decente: “Sim, és.” Num país algo
desencantado, o grande desafio está em tentar desenvolver um sentimento de
pertença que vá além dos prodígios do futebol.
Quando o
senhor Presidente da República me convidou para presidir a estas cerimónias
houve muita gente que ficou espantada, incluindo eu próprio. Mas com o tempo
fui-me afeiçoando à ideia de que talvez não seja absolutamente necessário ter
méritos extraordinários para estar aqui, e que Portugal precisa cada vez mais
de um 10 de Junho feito de pessoas comuns e para pessoas comuns.
Um 10 de
Junho que aproxime as linhas entre o “nós” e o “eles”. Uma festa do português
anónimo, da arraia-miúda, daquelas pessoas que todos os dias fazem mais por
este país do que elas próprias imaginam.
O 10 de
Junho do meu avô, que tinha uma casa de pasto no fundo da rua de Elvas e
oferecia um prato de sopa a quem não tinha dinheiro para pagar uma refeição.
O 10 de
Junho dos meus sogros, que tiveram de fugir de Moçambique em 1975 e reconstruir
toda a vida em Portugal com seis filhos para criar, alguns dos quais ficaram
dispersos pela família até eles voltarem a ter condições para os acolher.
O 10 de
Junho das três mulheres que criaram a minha mulher, uma delas originária de
Timor, que viajaram desde o outro lado do mundo para acolher um bebé nascido em
Moçambique e fazê-lo crescer numa pequena aldeia da Beira Interior.
São
histórias de vida impressionantes.
Portugal
não é composto apenas por instituições longínquas, Parlamentos em Lisboa,
políticos distantes de quem dizemos mal no café.
Portugal somos nós. Sou eu. São as
pessoas que estão sentadas em lugares privilegiados nestas bancadas. São os
militares que desfilam à nossa frente e que tanto fazem pelo seu país. São os
portalegrenses debaixo do sol de Junho. São as pessoas lá em casa, a ouvir
estas palavras.
Todos
temos nas nossas famílias histórias destas, de gente banal envolvida em feitos
extraordinários.
Temos o
hábito de levantar a cabeça à procura de grandes exemplos, e nem sempre os
encontramos, mas muitas vezes os melhores exemplos estão ao nosso lado, e
alguns deles começam em nós mesmos.
Sobre
cada um de nós recai a responsabilidade de construir um país do qual nos
possamos orgulhar.
Aos
políticos que dirigem Portugal, e representam os seus cidadãos, compete-lhes
contribuir para esse esforço, propondo-nos um caminho inteligível e justo. Os
portugueses podem não ser os melhores do mundo, mas são com certeza capazes de
coisas extraordinárias desde que sintam que estão a fazê-las por um bem maior.
A
política não falha apenas quando conduz o país à bancarrota. A política falha
quando deixa o país sem rumo e permite que se quebre a aliança entre o
indivíduo e o cidadão.
Aquilo
que melhor distingue as pessoas não é serem de esquerda ou de direita, mas a
firmeza do seu carácter e a força dos seus princípios. Aquilo que se pede aos
políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos deem alguma coisa em
que acreditar. Que alimentem um sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objetivo
claro à comunidade que lideram.
Nós
precisamos de sentir que contamos para alguma coisa, para além de pagar
impostos.
Cada
português precisa de sentir que conta, precisa de sentir que os seus gestos não
contribuem apenas para a sua felicidade individual, ou para a felicidade da sua
família, mas que têm um efeito real na sociedade, e podem, à sua medida, servir
o país.
É preciso
dizer ao velho que perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão: “tu contas”.
É
preciso dizer ao miúdo que habita na pobreza do Bairro da Jamaica: “tu contas”.
É
preciso dizer ao cabo-verdiano que trocou a sua terra por Portugal, em busca de
um futuro melhor para os seus filhos: “tu contas, e os teus filhos não estão
condenados a passarem o resto das suas vidas a limpar as casas da classe altas
de Lisboa ou do Porto”.
É
preciso dizer à mãe ou ao pai que se sacrifica diariamente para que o seu filho
possa estudar numa boa escola: “tu contas, o teu esforço não será desperdiçado,
e enquanto cidadão português tens os mesmos direitos e a mesma dignidade que um
primeiro-ministro ou que um Presidente”.
E se
alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que
currículo tem tanto o académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o
pai que decide dedicar a sua vida aos filhos.
Currículo
tem tanto o cientista que dedica o seu tempo à investigação como o reformado ou
o jovem que dedicam o seu tempo a ajudar os outros.
São diferentes tipos de currículo, mas
são currículo.
E se
ainda assim vos perguntarem “quem é que tu achas que és?”, respondam apenas:
“Sou um
cidadão que todos os dias faz a sua parte para que possamos viver num Portugal
melhor e mais justo.”
Isso
chega. Aliás, não só chega, como é aquilo que mais falta nos faz.
Muito obrigado.